domingo, 27 de janeiro de 2013

o Divórcio


Tinha portanto feito uma aposta com o Diabo e estava decidido a vencê-la! Meti mãos à obra e comecei a escrever desalmadamente: mas escrevia versos para o Diabo ou para a Rapariga da biciclete vermelha? Para minha vaidade ou para a salvação da rapariga que amava...?

Todos os estudos indicavam o stress e as prioridades profissionais como causas maiores do elevado aumento do número de divórcios, ano após ano... Mas eu não me ralava! Por um lado não via telejornais, por outro... nós nem éramos sequer casados.

Sabia apenas que tinha de escrever, escrever diariamente belos versos, pois o Diabo não era parvo nenhum e queria ganhar dinheiro – de preferência muito, o que não deixava de ser uma manifestação de grande lirismo por parte do Belzebu, tendo em conta a exiguidade do número dos que neste país, dito “de poetas”, efectivamente se dão ao trabalho de ler versos, quanto mais desembolsar guito para os poder ler...!  

Desta forma, para avaliar a qualidade das minhas criações, tratou Belzebu de reunir o Clube de Poetas Mortos (líricos como eu, mas com a bota entretanto batida). Assim, não só tinha de escrever todos os dias um poema, mas tinha também de ser uma obra-prima capaz de poder ombrear com os rigorosos padrões literários de muita e diversa gente já morta e por isso mesmo… petulantemente consagrada! De arrasar com os nervos de qualquer um – garanto-vos!

Mas eu todavia estava animado por um ideal: Salvar a Rapariga da biciclete vermelha do vício do álcool, resgatando para o mundo essa virtuosa pianista que caíra na esparrela das Macieiras. E já agora... poder publicar, também! Mas sabem que mais? Estava a dar baile ao Diabo! Com o frenesim dum doido, passava os dias a rabiscar caderninhos, alheio a mais distracções que não a busca incessante de inspiração através dos chamados “paraísos artificiais”... Sim! Pois se Dante descera aos infernos pela sua Beatriz, também eu podia muito bem ir ao fundo da garrafa pla Rapariga da biciclete vermelha!

E como eu estava em queda, meus amigos! Dei por mim a beber mais Macieiras que a minha musa – o que era realmente notável! Mas se isso tinha um óbvio efeito sobre os meus estados de alma, que se tornavam perturbadoramente mais eufóricos e megalómanos... pior se revelou a minha intensa, quase exclusiva dedicação à escrita. Deixara de ter tempo para a nossa relação: era capaz de escrever soberbos sonetos sobre os olhos amendoados da Rapariga da biciclete vermelha, mas era incapaz de lhe espreitar a alma; redigia lindas odes ao seu ganchinho, mas enquanto me cingia ao acessório estético, não percepcionava o caleidoscópio vasto das suas crises emocionais.

E que crises emocionais! Todos os médicos lhe diagnosticavam a mais completa cura, mas ela persistia em queixar-se das dores: passaram-se os dias e semanas, mas tudo em vão! A Rapariga da biciclete vermelha padecia do dedo mindinho – aquele dedo mindinho que falhava um certo dó em semi-fusa, que fora mais tarde retalhado numa desastrada tentativa de abertura da maldita lata de atum e em seguida cosido em urgência com 13 pontos no Hospital de São José.

Seria tudo psicológico, uma espécie de complexo pós-traumático? De cada vez que tentava teclar, dores lancinantes, tolhiam-na... As marcas ainda lá estavam, é certo! Mas as piores cicatrizes teimavam em sangrar-lhe, abertas em chagas vivas, no mais profundo do seu íntimo ser. Ela adiara as provas e deixara de tocar o piano, que agora mudo ganhava pó! Mas eu... eu nem dera por nada, ou tomava tudo como um capricho passageiro: vivia cego de ambição – febril no tumulto de triunfar sobre o Diabo. Que dias de pura insanidade vivia, que delírios de ebriedade! Mas hoje... hoje porém estou em crer que o Diabo era eu! Ou que pelo menos o trazia no corpo, dirigindo-me a vontade e a conduta para fins que de altruístas nada tinham.

Embarcara numa aposta com Mefistófeles para salvar a rapariga da biciclete vermelha...? Embriagava-me seguramente bem mais com miragens do que com as malditas macieiras! Ali estava ela, definhando diariamente enquanto eu cada vez mais absorto me recolhia nos meus arabescos. Teria deveras pactuado com o Diabo para a salvar? Com que enganos de alma me emborrachava!

Para a poupar a mais aflições, decidira ocultar à Rapariga da biciclete vermelha o resultado e termos do meu entretien com o Diabo. oh Cristo! Hoje percebo o erro que foi o meu silêncio: como poderia aquele anjo compreender o meu tolo optimismo, quando ela se afundava na mais sombria depressão? Como poderia ajuizar aquele ser delicado, subtil como a brisa de Maio, a grosseria do meu alheamento? Como poderia a virtuosa pianista perdoar-me os quiméricos projectos líricos, quando ela se sentia incapaz de teclar a mais simples melodia?

Não seria, face ao exposto, uma surpresa que nela fosse crescendo um sombrio azedume e uma discreta mágoa por aquilo que só poderia ser entendido como um crescente distanciamento meu, precisamente... precisamente na altura em que a rapariga mais precisava de mim. Não deveria ter sido uma surpresa. Ou pelo menos, não para quem estivesse minimamente atento aos sinais... mas eu apenas tinha olhos para páginas em branco por preencher e dead-lines por cumprir para o Diabo que me editaria. 

Não deveria ter sido uma surpresa... mas foi surpreendente: quando a bílis da rapariga da biciclete vermelha explodiu de rancor, não se ouviu um grito, não se partiu um prato ou servido foi qualquer cliché temperamental. Não, nada disso! Quando cheguei a casa, franqueei a porta e cruzei a sala... já lá não estavam o piano, a biciclete e a rapariga. A miúda partira: o vento mudou e ela não voltou. Até hoje...

1 comentário:

Rute Rockabilly disse...

finalmente um arrependimento qualquer...